Distantes de tudo

"Temos nosso próprio tempo."
Renato Russo

- Vamos ver o céu lá fora - convidou, entusiasmado.

A noite sabia ser charmosa. Talvez pelo silêncio dos idiotas ou a ambiguidade da escuridão. E trazia aquelas poucas estrelas, porém suficientes. Também a Lua parcialmente oculta e muitas nuvens espessas, que significavam mistério ou uma promessa.

Lá dentro, as pessoas se acabavam. Como todos nós já nos acabamos alguma vez. Física ou mentalmente. E falavam outro idioma, áspero e hostil. Mas não interessava. Não quando o mundo estava lá fora, calmo e noturno.

Olhou para o céu, como havia proposto. E admirou todas as constelações que ainda não conhecia. E que guiaram a Humanidade para que chegássemos aqui e agora. Depois se voltou para aquele par de olhos ingênuos e castanhos. E então pensou no céu. E nos olhos. E se sentiu repleto de algo importante. Ar, vida ou poesia. Imprecisão.

Como retribuir a imensidão e sublimidade de estar ali? E dizer que ama demais, mais que tudo, e que não quer que seja diferente nunca? Como dizer, agir e até ser óbvio, sem invadir ou limitar? Como amar da melhor forma possível? Como estar presente, mesmo no futuro?

- Obrigado por ter vindo - foi o que achou sensato dizer.

- De nada - e então seguiu aquele sorriso de quem sabia que poderia ter dado uma resposta melhor. Ou será que nem sabia?

Seguiu-se silêncio e contemplação. Reciprocidade - ainda que não escancarada e muito menos divulgada, mas verdadeira. Os anos trouxeram a certeza, sutil e doce, como a primavera que chega sem avisar.

E o sorriso virou movimento. Quatro braços se uniram, aproximando os corpos. Deslizaram pelas costas, em um vai e vem tátil. Cada toque parecia uma palavra repleta de significado. Filosofia e também matemática. E quando o fim pareceu próximo, apertaram mais.

O barulho da porta fez com que se separassem de imediato. Um rosto conhecido cambaleava em direção ao jardim, sem notar que tinha companhia. Encontrando a moita mais próxima, inclinou-se em direção a ela e despejou tudo para fora. Vomitou tudo de ruim que havia acontecido naquela noite. E a tontura fez com que caísse na grama ao lado, desnorteado.

Caminhou em direção ao amigo caído, para prestar socorro. Foram necessários alguns sacolejos para que ele retornasse a si. Quando ele pôde se manter sentado por conta própria, imaginou se seria prudente oferecer um chocolate ou algo parecido.

- Você tem um...? - ia perguntar.

Mas não havia mais ninguém ali. Apenas ele, o amigo bêbado e o vômito. Olhou em volta, assustado. Caminhou alguns passos em direção a onde estivera minutos antes, mas a outra metade do abraço havia desaparecido

Ainda restava a festa, lá dentro. Algo em sua atitude perante o amigo bêbado haveria desagradado? Ou talvez apenas buscasse ajuda lá dentro. Muitas hipóteses passavam pela sua mente aflita. Só não imaginava que nunca mais voltaria a ver aqueles olhos castanhos.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Cartas para Duda (IV)

Vão

Cartas para Duda (VII)